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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Polícia Federal investiga PMs cearenses por suspeita de revenda ilegal de armas de fogo e munições

 Dois cabos da Polícia Militar do Ceará repassavam equipamentos para outros militares; investigações apontam que um deles comprou equipamento de tráfico internacional.


Era 21 de outubro de 2018 quando um cabo da Polícia Militar do Ceará pegava seu telefone para fazer uma chamada de reclamação. Do outro lado, em Guaratuba, no Paraná, sem saber que estava sendo interceptado pela Polícia Federal, o traficante internacional de armas e munições Paulo José Vasconcelos ouvia de forma atenta os questionamentos.
Arma identificada pela PF sem registro no Sinarm sob posse de um dos cabos da PM

O cabo havia adquirido de Paulo Vasconcelos um kit roni por meio do site Mercado Livre. Embora o material ilegal de origem paraguaia tivesse chegado com toda a tranquilidade pelos Correios, o equipamento não estava funcionando. O kit roni é um produto de uso restrito controlado pelo Exército e transforma armas leves em longas; o militar o havia adquirido para usá-lo em uma arma de fogo real.

Durante o telefonema, Paulo se esforça para convencer o cabo a retirar uma reclamação feita no site do Mercado Livre. Ele diz que já vendeu o acessório a diversos clientes sem receber reclamações, inclusive do mesmo lote ao qual havia vendido ao policial. Eles continuam conversando sobre as falhas e calibres das armas de fogo nas quais o kit seria utilizado.

Foi nesse telefonema que o cabo da PM e outros 14 policiais militares cearenses entravam nos autos da Operação Mercado das Armas, da Polícia Federal. A investigação está em segredo de Justiça e descobriu um esquema de tráfico internacional de armas e munições, cuja teia comercial alcançava diversos estados como Rio Grande do Sul, Roraima, passando pela Bahia e, claro, pelo Ceará.

A operação foi deflagrada em 29 de julho deste ano, após a Justiça Federal autorizar 25 pedidos de busca e apreensão, entre os quais dois são contra PMs do Ceará. Os nomes dos alvos e dos demais militares que teriam negociado armas de fogo e munições de forma ilegal não serão divulgados em razão de os primeiros ainda constarem no inquérito como investigados. Eles não foram presos pela Polícia Federal.

Nas apurações, ficou constatado que os materiais eram comprados principalmente de uma loja no Paraguai, que é gerenciada por irmãos libaneses suspeitos de ligação com um grupo terrorista. Os equipamentos ilegais eram vendidos por meio do Mercado Livre e enviados pelos Correios. Além de policiais militares cearenses, as armas e munições foram destinadas a integrantes do Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, e a assaltantes de carros-fortes, em São Paulo.

Negociação

Por aqui, o cabo da PM teria negociado munições ou armamentos com, pelo menos, 12 policiais militares devidamente identificados pela Polícia Federal. Desta forma, ele passou para a condição de investigado na operação e foi considerado suspeito de comercializar e adquirir de forma ilegal armas de fogo e munições restritas. "Ressalto que, muito embora o comprador seja policial, o mesmo deve obedecer às regras para eventual compra do acessório, o que não foi seguido no caso", diz trecho do relatório da PF.

Com isso, o cabo passou a ter suas conversas também interceptadas por autorização judicial e, nelas, apesar de sempre indicar que as tratativas da venda de acessórios armamentícios sejam feitas pelo aplicativo WhatsApp, a Polícia Federal conseguiu identificar suspeitas de práticas criminosas. Em uma conversa com outro cabo da PM cearense (página anterior), eles debatem como a venda pode ser feita. Em outra ligação, realizada no dia 11 de março de 2019, cuja transcrição consta nos autos da Operação Mercado das Armas, um homem não identificado pela PF pergunta sobre armamentos ao cabo.

"Só no final do mês"

"Cadê a minha .40, a minha glock?", pergunta a pessoa não identificada, ao que o militar responde: "só no final do mês". Mais à frente na conversa, o homem questiona se está faltando espoleta (um composto químico utilizado para iniciar a combustão em uma munição). O cabo responde: "É que eu peguei, eu encomendei umas importadas, que a CBC costuma dar umas falhazinhas, né?". A Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) é uma das organizações autorizadas formalmente a produzir munições no Brasil.

Em outro diálogo, o cabo afirma ver a possibilidade de revender 3 mil munições a um homem não identificado. Segundo a PF, o militar realizou a importação de insumos para a produção da munição que posteriormente iria comercializar. Com relação aos demais militares envolvidos, conforme os investigadores, os dados sobre eles devem "ser compartilhados com a Corregedoria Militar do Ceará".

A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) informou que as investigações estão sob responsabilidade da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário (CGD) e que a Polícia Militar do Ceará não instaura procedimentos administrativos de apuração quando o crime não é militar.

A CGD ressaltou, em nota, que "tão logo tomou conhecimento" sobre o esquema, "determinou instauração de procedimento investigatório para apuração". "A Controladoria trabalha, internamente, em apuração concomitante à da PF com o objetivo de esclarecer os fatos na seara administrativa", escreveu. A Pasta, contudo, não especificou quando recebeu o inquérito da Polícia Federal e se os PMs envolvidos no esquema foram ou não afastados das suas funções na Corporação.

(Diário do Nordeste)