Uma decisiva reviravolta judicial ocorreu em Fortaleza, quando a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) condenou um casal por manter, por cerca de quatro décadas, uma empregada doméstica idosa em condições comparáveis à escravidão. A decisão anulou a absolvição que havia sido concedida anteriormente pela 11ª Vara Federal do Ceará.
A vítima, atualmente com 79 anos, foi encontrada durante uma fiscalização realizada em maio de 2023 pela Polícia Federal, Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho. Conforme apurado, ela executava tarefas domésticas diariamente, das 6h às 19h, sem receber salário, folgas, férias ou sequer descanso semanal. As autoridades relataram que ela dormia em uma rede num quarto inadequado, rodeada por produtos de limpeza, uma máquina de lavar e uma gaiola de pássaros, sem acesso aos seus documentos pessoais, cartão de benefício ou à sua própria conta bancária — todos controlados pelos empregadores.
Na reiteração do caso, os réus alegaram que a trabalhadora era vista como parte da família, mas o tribunal rejeitou essa justificativa com base em evidências contundentes. Segundo a desembargadora relatora, enquanto os demais membros da residência usufruíam de plano de saúde, educação formal e plena cidadania, a idosa permanecia analfabeta, sem cuidados médicos adequados, submetida a exposição social limitada e submetida a condições de trabalho desumanas.
A magistrada destacou que, embora existisse histórico de convivência prolongada, o vínculo afetivo alegado não eximiria os autores da responsabilidade pelo tratamento degradante. Foi ressaltado que a retirada de documentos pessoais, a vigilância cotidiana, a imposição de horários exaustivos e a negação de autonomia configuram uma grave violação aos direitos da pessoa humana.
A análise do caso também considerou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que exige que juízes observem as dimensões étnicas, socioeconômicas e históricas em casos de trabalho doméstico análogo à escravidão. O documento ressalta que relações mascaradas como “afeto” não podem justificar exploração, especialmente quando envolvem pessoas em situação de desigualdade e exclusão prolongada.
Ao acolher a apelação do Ministério Público Federal, o tribunal reformou a decisão de primeiro grau e aplicou aos réus a pena prevista no artigo 149 do Código Penal, que trata do crime de redução à condição análoga a de escravo.