De acordo com pesquisa, 83% dos docentes se sentem pouco ou nada preparados para o trabalho na modalidade de tele aprendizado.
Professora do terceiro ano do ensino fundamental, Mariana Roncato, de 37 anos, precisou não apenas aprender a utilizar plataformas pedagógicas virtuais, como também, e simultaneamente, ensinar seus alunos, que têm, em média, 8 anos, a usar as ferramentas. Sem muita familiaridade com o universo dos programas de edição de vídeos, por exemplo, ela teve que redobrar seus esforços na criação de conteúdos didáticos para aplicação online.
A adaptação ao teleaprendizado, associada às necessárias medidas de isolamento social, provocou turbulência no cotidiano da professora. Tamanha foi a desestabilização que, hoje, a profissional precisa se dedicar quase integralmente às aulas e planos de aulas, mas já não consegue ajudar sua filha Maria Flor, de 6 anos, nas tarefas escolares dela.
Mariana não está sozinha: entre os professores brasileiros, 88% nunca haviam ministrado aulas remotas antes da pandemia, e 83% se sentem nada ou pouco preparados para o trabalho nessa modalidade – conforme aponta pesquisa do Instituto Península, que será divulgada integralmente nesta segunda-feira (18).
O estudo ouviu 7.734 profissionais de todo o país entre os dias 13 de abril e 14 de maio, portanto cerca de seis semanas desde a implementação oficial da quarentena em diversos Estados.
E a verdade é que a profissional ainda tem sorte por ter recebido algum tipo de capacitação. A maioria de seus colegas (55%) não teve qualquer suporte para ensinar fora do ambiente da escola desde a suspensão das aulas presenciais. Por outro lado, 75% desejariam receber treinamento.
“Tenho um tempo de dedicação quase exclusiva, porque, às vezes, demoro até sete horas para gravar e editar um vídeo que vai durar três minutos”, explica a professora, completando que, além de aprender a utilizar as plataformas pedagógicas virtuais, tem que desbravar os programas de edição de vídeo e de áudio, por exemplo. “São horas e horas de tutoriais”, diz.
Mudança brusca
Feita no início da suspensão das aulas presenciais e que também faz parte do levantamento “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus no Brasil”, a primeira etapa da já mencionada pesquisa indicou que 60% dos docentes desejavam fazer cursos e se aprimorarem neste período. As dificuldades diárias, no entanto, são um obstáculo difícil de superar.
“No início, pensei que poderia, por exemplo, fazer ioga diariamente, tentar levar essas mudanças de maneira mais tranquila. Mas a quantidade de atividades para desenvolver e criar com a ferramenta é grande, e o trabalho foi me consumindo”, reconhece Marianne Resende, de 38 anos, tutora do ensino fundamental II.
Outro problema com o qual esbarrou foi a dificuldade de estabelecer horários. “Quando você vai de casa para a escola e, depois, volta da escola para casa, essa mudança de espaço já é um marco para estabelecer um quando começou e quando terminou sua jornada. Sem isso, fica muito vago...”, pontua Marianne, que dá aulas a crianças de, em média, 11 anos.
E se pequenas tarefas do dia a dia já disputam o tempo dos profissionais da educação, no caso dela há um agravante: a professora precisou, em meio à pandemia, fazer uma mudança, pois o locatário da casa em que vivia pediu o imóvel.
Marianne também está entre os 88% que não possuíam experiência com as ferramentas para a educação remota. “O início foi muito custoso. Eu, particularmente, não tinha uma lida tão grande com essas ferramentas”, diz, refletindo que, “se aprender já é um desafio, em um cenário que não é muito acalentador fica ainda mais difícil”.
“A verdade é que todos fomos, sim, pegos de surpresa. É uma mudança brusca em nosso projeto”, estabelece.
Rotina extenuante
Além de Maria Flor, Mariana Roncato é mãe de outra menina, a Cecília, de 3 anos. Não por acaso, monta seus planos de aulas madrugada adentro.
“O meu marido também trabalha em casa, o dia inteiro em home office. Como meu horário fixo é só durante as videoconferências, durante a tarde, fico mais por conta das meninas”, explica. “Às vezes, monto escritório no chão da casa, onde posso ficar mais próxima das minhas filhas enquanto elas pintam ou assistem TV, por exemplo”, comenta, sem se importar muito com as dificuldades ergonômicas que a posição implica.
“Naturalmente, elas demandam muita atenção, então acabo optando por ficar até duas da manhã preparando material, quando posso me concentrar melhor, ter mais silêncio”, garante.
Com a família em casa durante todo o tempo, uma nova rotina ainda não se estabeleceu. “Não existe mais! Acordo e já tem uma demanda. Tem dias que o almoço só vai ficar pronto lá pelas 15h. Tem ainda a casa, que vai ficando mais suja, porque fica mais gente aqui dentro”, situa. Detalhe: como o quartinho dos brinquedos virou home office, a sala, agora, mais parece um playground.
Essa ruptura no cotidiano dos professores brasileiros foi identificada na primeira fase da pesquisa realizada pelo Instituto Península.
Segundo o estudo, que ouviu 2.400 docentes da educação básica em todo o Brasil, 7 em cada 10 mudaram muito ou toda a rotina com a crise. Mais de 90% dos respondentes demonstraram estar muito ou totalmente preocupados com a situação atual, e já é possível notar efeitos na saúde mental deles, afirmando que o suporte e o apoio psicológico seriam fundamentais.
No levantamento mais recente, 75% revelaram que não receberam nenhum suporte emocional.
Intensidade
A presença dos pais “em sala de aula” é outro fator novo com o qual os docentes precisam lidar. Também pressionados pelas mudanças que a Covid-19 implicou, os tutores têm empregado uma intensidade maior em elogios e críticas aos profissionais da educação.
“Tem famílias que estão acompanhando e que acabam envolvidas pela boa qualidade das conversas que temos com os alunos. Alguns pais e mães já me procuraram, dizendo que aprenderam algo ouvindo as aulas”, comenta Marianne Resende. Algumas vezes, a excitação é tamanha que os tutores acabam se manifestando junto com os estudantes.
Por outro lado, há famílias que, também readaptando-se a uma nova rotina, têm dificuldades em auxiliar os filhos em suas tarefas escolares dentro das plataformas educativas digitais. “Tem alguns que ficam bravos. Já lidei com aqueles que descarregaram sua raiva, sua frustração e aqueles que, depois, pediram desculpas”, comenta a professora, atribuindo ao ambiente virtual, “super-ruidoso”, parte do problema.
Mariana Roncato ratifica as observações da colega. “A gente busca ir adequando nosso trabalho para atender às demandas das famílias, mas cada uma tem sua particularidade. Como eles também estão sobrecarregados, pode acontecer de ficarem mais agressivos e realizarem cobranças, por vezes, de forma muito incisiva”, avalia.
Insuficiente
“Nada substitui a presença, o estar do lado. Presencialmente, é possível fazer leituras, como da fisionomia e do tom da voz, o que ajuda a saber como podemos ir conversando com um aluno”, comenta Marianne Resende. “Quando o aluno está distante, é difícil estabelecer esse vínculo e a criança se abrir”, diz.
“O ensino remoto não pode ser comparado nem de longe ao modelo de Educação a Distância (EaD). Quando você, espontaneamente, opta por fazer um curso por EaD, você sabe que vai precisar de um computador e de uma internet de boa qualidade e, assim, poderá ser cobrado. Mas, quando o formato é imposto, não há paridade. Nem todos terão a mesma qualidade de máquina ou de banda larga e, portanto, é mais difícil que sejam avaliados com justiça”, critica Mariana Roncato.
A professora lembra que a educação básica é pensada como um processo de formação em que os estudantes aprendem com a interação, seja com professores ou com colegas. Ela cita também que, presencialmente, é possível intervir quase imediatamente diante de problemas de aprendizagem dos alunos, como a desatenção. “Remotamente, a gente não consegue fazer isso assertivamente”, lamenta.
As coisas vão melhorar, diz, quando a pandemia for vencida.
(O Tempo)