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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Cemitério de frutas e verduras



"Sobraram 50 caixas e não compensa eu levá-las de volta. Por isso, descarreguei tudo aqui no chão". O depoimento do produtor Raimundo Fernandes de Lima é o fiel retrato do descalabro em relação aos alimentos na Central de Abastecimento do Ceará (Ceasa) de Tianguá. A reportagem flagrou o exato momento em que ele jogava no pátio milhares de quiabos em bom estado, aliás, em perfeita condição para a venda. "Quando o mercado está fraco, é assim mesmo. Faz parte do negócio", justifica Raimundo, mais conhecido como Eudes do Quiabo.

Segundo o produtor, a perda dessa vez foi maior do que ocorre costumeiramente. "Trouxe 160 caixas e consegui vender apenas 110. Mas, em média, é comum a gente deixar somente uma caixa pelo caminho", emenda, ao quebrar alguns quiabos para comprovar que a mercadoria era da melhor qualidade.

O mau exemplo de Eudes do Quiabo é praticamente uma regra na central de Tianguá. Flagramos um carregamento de maracujá que ia para Sergipe. Os frutos eram retirados em sacos e colocados no caminhão a granel (sem embalagem ou acondicionamento). João Ângelo, um dos homens encarregados de "organizar" os alimentos na carroceria, garantiu que "não havia problema algum em relação ao desperdício. Além de pisar em cima dos maracujás, ele jogava vários frutos no chão. "É uma quantidade muito pequena, que não faz falta", argumenta.


O produtor Ronaldo Gomes da Silva reconhece que "muitas vezes é a oscilação nos preços que ocasiona o desperdício. Trabalho com o pepino. Dá um trabalho danado para colher corretamente. Quando ele encosta no chão fica um pouco amarelado. Aí é melhor descartar logo pois ninguém quer comprá-lo. Pela minha experiência, calculo a perda em 20%. Só em condições especiais, ou seja, quando a oferta é menor que a demanda, a gente consegue vender até essa parte que se perderia".

Já Pedro Vieira de Menezes prefere frisar que "a situação já foi bem pior. Antigamente, tudo era transportado a granel. Fazia lama por aqui. Hoje, as perdas maiores são mesmo no campo. Muita coisa fica por lá. Em primeiro lugar, tem a questão das pragas que atacam a plantação; depois, a gente está sofrendo com essa mudança do clima: já não se tem mais certeza de nada em r

elação às chuvas ou até quando vai o período de estiagem. Com todos esses problemas, não há como fugir dessa realidade, infelizmente".

Cenário que impressiona mesmo em Tianguá é o que todos por ali convencionaram chamar de cemitério de alimentos. Um dos funcionários da central, Edilson Araújo, conta que às quartas-feiras e aos sábados, após a movimentação, as sobras que são despejadas pelo pátio são jogadas no terreno dentro da Central, a vinte metros de distância dos boxes. "Quando está cheio, o pessoal da Prefeitura vem com a máquina patrol e recolhe tudo para o lixão da cidade", revela Edilson


O funcionário estima que, em média, 25 tambores com alimentos estragados são recolhidos a cada dia de movimentação na central de abastecimento. Como cada um deles comporta 200 litros, isso 
a dizer que 5 toneladas de alimentos são desperdiçadas. "A gente fica um tanto triste com isso, pois ao mesmo tempo vê algumas pessoas necessitadas perambulando por aqui para buscar algo que possa ainda ser consumido".

Uma dessas pessoas é Maria do Carmo Dias. Mãe de dois filhos menores e solteira, ela diz que não é amparada pelos programas sociais do governo e que a única alternativa para a alimentação da família é catar do lixo. "Se não fosse esse cemitério aqui a gente estava passando fome. É uma pena que muitos tenham tanto e alguns, como eu, não tenha nada",

desabafou.



Adubo

O gerente da Ceasa de Tianguá, Júlio Teixeira, minimiza as perdas. "Na verdade, o que se perde é pouco, pois o pessoal carente da comunidade vem pegar o que não é vendido. O que vai para esse terreno (cemitério de frutas) é porque encontra-se já em estado deteriorado. A gente leva para o lixão e, de lá, ainda há quem aproveite como adubo".

Júlio revela que o Mesa Brasil recolheu durante dois anos alimentos no local mas parou há seis meses. "Não sei o motivo. Sei que eles levavam as frutas para Sobral". O gerente afirma que, preocupada com as perdas, a Ceasa ministrou alguns cursos junto aos produtores para que fosse minimizado o desperdício desde a hora da colheita até o momento da venda.


Tomate vira lama na serra de Ubajara

No último mês de maio, o tomate foi o vilão da inflação em Fortaleza, com a maior alta, de 31,78%, de acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica, realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Nem mesmo essa expressiva valorização, foi capaz de sensibilizar os produtores no tocante ao desperdício. Encontrar um agricultor disposto a mostrar como ocorrem as perdas no campo não é tarefa fácil. A reportagem conversou com Antônio Domício, conhecido como Louro da Jaburuna, em Ubajara. Ele possui uma propriedade de 60 hectares no distrito de Jaburuna, dos quais três estão ocupados pela sua produção. A princípio, ele não fez restrição em mostrar como realiza a plantação e colheita. No meio da entrevista, porém, quis voltar atrás, argumentando que seria melhor procurarmos outras pessoas, "pois a reportagem poderia prejudicá-lo".

Depois de convencê-lo de que esse não era o nosso objetivo - prejudicá-lo - ele continuou a conversa e permitiu o nosso acesso ao restante da propriedade. Apesar de usar telas de proteção para evitar os insetos, a perda nas terras de Antônio Domício é enorme, embora ele não entenda assim. "Quem insiste em não usar a tela se dá mal. Quando a broca atinge, os dois primeiros cachos acabam indo para o chão. Nos casos mais graves, o extravio pode ser de 50%. Em média, não é menos que 30%".

Conforme Domício, com o equipamento, esse percentual passa a ser de "apenas" 6%. "Muita gente por aqui está aderindo agora depois que viu o resultado na minha lavoura. De 500 caixas colhidas, 30 se perdem, normalmente pelo fato de o fruto já ter amadurecido antes do tempo necessário para chegar ao mercado". Segundo o produtor, "esse resto vai para os animais".

Atravessador


Um exemplo de como todos são coniventes com os prejuízos é a forma como a mercadoria é negociada. Domício revela que uma caixa cheia pesa em média 30 quilos. Ocorre que os atravessadores só recebem como se contivesse apenas 28, sem pesar. "O mercado é que influencia bastante as perdas. Se chegar o momento da colheita e a oferta for muito grande, muitos deixam o fruto apodrecendo pelo chão mesmo. E isso não acontece só com o tomate. Serve para todo tipo de frutos e hortigranjeiros", relata.

Segundo o produtor, é de agosto a outubro que esse tipo de situação acontece. "Com isso, o que foi plantado para alimentar as pessoas se transforma naturalmente em adubo".

Outro problema que nem sempre os agricultores conseguem administrar é o fator climático. "Mesmo em períodos de estiagem, quando chove forte em determinado dia, há o risco muito grande de prejuízo. A água derruba os frutos mais maduros e aí fica sem jeito".

Na plantação de Domício, constatamos milhares de tomates espalhados pelo chão, em ótimas condições para o consumo. Uma cena intrigante. Afinal, por qual motivo tudo aquilo estava sendo desprezado? Francisco Joélio Pereira, um dos trabalhadores encarregados de realizar a colheita, contou que isso faz parte da cultura do sertanejo. "Nós já estamos acostumados a colher apenas os frutos que estão no pé, pois, algumas vezes, os que caem no chão se machucam e não servem para venda. Acontece que, de fato, muitos que estão no solo estão em perfeitas condições e acabam sendo confundidos com os demais", reconhece.

Outra revelação de Joélio é que, quanto maior for a safra, "menos o pessoal valoriza. Se a gente plantar um hectare, a perda é de uns 30%; se forem dois, ela passa a ser de 35% a 40%. Quanto maior for a abundância, maior é o desperdício. O contrário também acontece. Quando a safra é pequena, há valorização maior do que se colhe".


Vulnerabilidade

Só na propriedade de Domício são produzidas cerca de 12 mil caixas de 30 quilos de tomate a cada ano. Isso totaliza 360 mil quilos. Se colocarmos o percentual mínimo de 6% de perdas, conforme o próprio produtor nos falou, isso significa dizer que, em apenas três hectares, são desperdiçados 21.600 quilos do alimento que poderiam estar na mesa das famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade alimentar. Após mostrarmos o cálculo a Domício, ele reconheceu que o prejuízo é maior do que imaginava. "É muita coisa. A gente não percebe. Vou fazer o que puder para diminuir esse percentual. Seria bom que o governo também entrasse nessa história para adquirir os excedentes e repassá-los a quem precisa", sugere.

Fonte: Diário do Nordeste