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domingo, 23 de novembro de 2014

Quando o casamento é só pela pensão


A história é escabrosa, novelesca, mas toda contada a partir de fatos verídicos. É apenas uma das que a Procuradoria Geral do Estado (PGE) está investigando de um golpe recém-detectado. O POVO não dará nomes porque o caso tramita sob segredo de justiça, mas minúcias apuradas ajudam a mostrar o nível de má-fé – e revelam a variação de fraudes que desfalcam os cofres previdenciários no País.
 O idoso (vamos chamá-lo assim, para ajudar a distinguir os personagens) foi ocupante de cargo importante no Judiciário local. Tinha 76 anos quando, portador de Alzheimer em alto grau detectado pelo menos cinco anos antes, casou-se com a nora. Estava apagado de sua consciência pela doença. Ele morreu no ano passado. Ela, hoje aos 40, embolsa aposentadoria generosa – sem nunca ter largado de seu companheiro de fato, o filho do idoso.

O casório entre o idoso e a nora – agora “viúva” do próprio sogro - foi firmado em cartório, em agosto de 2012. O filho dispunha de uma procuração pública. O pai morreu no mesmo mês de 2013, exatamente um ano depois. Estava com alto grau de diabetes, teve falência de órgãos, estava degenerado pelo Alzheimer. As duas filhas dele choraram a perda do pai desavisadas. Desconheciam a trama até então. 
 
O filho, porém, sabia, por indícios e provas já juntados no processo – conforme O POVO apurou. Ajudou a montar a fraude previdenciária. E a pensão por morte, silenciosamente, caiu para a conta bancária da “viúva”. 

Desde o mês seguinte ao óbito, a mulher passou a receber R$ 11.826,00 mensalmente. Questionado judicialmente, o benefício ainda está em caráter provisório, mas pode passar a definitivo - e aumentar para cerca de R$ 15 mil.
 
O matrimônio fora um golpe caseiro para enganar a Previdência estadual. Já são 14 meses pagos, desde a morte. Ela, dentista, mantém uma união estável de mais de 10 anos com o filho do idoso. Apenas sem papel passado. 

Casara-se com o sogro só pela fraude. Num acerto familiar com as irmãs, o filho era responsável por cuidar do pai. Situação propícia para esconder o embuste.
 
O caso é um dos mais graves numa lista de uniões supostamente enganosas em análise na PGE no Ceará. Que seriam exclusivamente para garantia do benefício pós-morte. No Direito, a situação é apelidada de “casamento previdenciário”. Há quem chame de “casar no leito de morte”.
 
O procurador-chefe da Consultoria Geral da PGE, Rafael Machado Moraes, diz  que o órgão, nos últimos três anos, passou a se deparar com muitos casos semelhantes. “É difícil quantificar. De 100 processos que a gente pegou para analisar com esses indícios, 10 estão (fraudados)”, estima. 
 
Os benefícios de pensões por morte, confirmados como fraude no radar da PGE, envolvem sempre “valores acima de R$ 10 mil”. O procurador admite que existe o processo questionando o casamento do ex-servidor com a dentista, mas não repassa informações detalhadas. Confirmou que há diligências em andamento. 
 
A PGE inclusive mudou procedimentos internos, a partir da repetição de casos com indícios suspeitos de casamento de fachada, e reorientou os servidores para a checagem mais rigorosa do que for duvidoso. “É um golpe caseiro, mas antes de tudo é um golpe contra o Estado”, afirma Machado. Se o recebedor(a) da pensão for muito jovem, e houver fraude, vai se beneficiar do ilícito por anos. Será vitalícia.
 
A dificuldade de se questionar a validade da união, firmada em cartório, é grande. Será a análise mais detalhista, a partir dos indícios de diferença de idade dos cônjuges e pouco tempo entre o casamento e o óbito do segurado, que apontará a suspeição. Como querer tirar o direito de amar no fim da vida? “São sempre casos muito delicados. A gente procura trabalhar com muita cautela”, admite o procurador. 

Números

10 mil reais é o valor médio que a PGE tem encontrado em pensões pós-morte questionadas no Ceará
 
10% dos processos de pensão sob suspeita na PGE têm sido confirmados como “casamento previdenciário”
 
80 bilhões de reais por ano é quanto o governo federal paga atualmente em pensões por morte no Brasil 
Fonte: O Povo